Se você não é professor, se nunca trabalhou em escolas, se não tem filhos ou se é alguém da atual geração que viveu a maior parte da vida encarcerado no sistema compulsório escolar, você talvez não concorde, talvez não entenda a importância e profundidade da crítica na obra Emburrecimento programado de John Taylor Gatto. A primeira edição do livro é de 2019 em língua portuguesa e conta com 133 páginas.
Longe de ser um
intelectual de gabinete, o autor lecionou em escolas por cerca de 30 anos e o
livro é fruto de discursos proferidos em ocasiões especiais como premiações e
palestras, podemos confiar que ele “esteve lá”, como se diz atualmente, estava
em seu lugar de fala ao criticar e até sugerir uma mudança radical no modo como
as pessoas foram ensinadas a pensar sobre o sistema escolar.
Confesso que senti
extrema empatia pela obra, lembrei da ocasião em que fui acusada de delírio por
propor uma pesquisa que exporia as mazelas do ensino profissionalizante em uma
escola onde estagiava, na verdade, a professora doutora tinha razão, era um delírio
usar a verba pública para estudar uma escola e ainda expor o sistema
contraditório e equivocado do ensino compulsório, a tarefa era grande demais e
me faltava vivência. Gatto tinha tudo, a experiência, o lugar de fala e já
podia falar abertamente sem temer as represálias do sistema.
O capítulo primeiro é
um discurso proferido em premiação no ano de 1991, mais de trinta anos atrás e
a escola já era problemática e repressora, imagina hoje em que nossos filhos
entram as 7 da manhã e saem 7 da noite, você acha mesmo que eles estão sendo
educados? Acha mesmo que a escola e seus funcionários são melhores e mais
qualificados que você? O professor Gatto abre o discurso dizendo que ensina
escola não aquilo em que foi licenciado como língua inglesa.
No entanto, o que
seria ensinar escola? É ensinar de forma confusa e apartada da vivência do
aluno o currículo tal qual mandado nas nossas semanas pedagógicas, e se você me
disser que pula o currículo para ensinar coisas importantes para a vida dos
alunos, você estará excluindo seu aluno do conhecimento que ele precisa para o
Enem e concursos, ou seja, é uma encruzilhada, ensinar o currículo é confuso
porque é informação por cima de informação em um tempo mínimo, não ensinar o
currículo é excluir aqueles que querem fazer concurso. Nada é aprendido com
profundidade, tudo é rápido, tudo é raso e desconexo como o mundo que foi
criado por este sistema educacional absurdo.
Ensinamos posição de
classe, cada classe está dividida de acordo com o desenvolvimento do aluno e se
você me disser que não é mais assim, entramos em outra encruzilhada, como
podemos aprovar para o próximo nível um aluno que ainda não aprendeu a ler? Encontrei
estudantes no ensino médio que não sabiam ler, se eles fossem reprovados no
primeiro ano, teriam se atrasado, entrariam nos números governamentais para os
quais somos treinados a maquiar a realidade. O sistema é feito para que não
haja escape. O aluno mais “adiantado” continuará sendo prejudicado por esperar
a classe avançar naquilo que ele já sabe, se for escola particular de elite, a
divisão é mais clara, são turmas olímpicas, turmas de medicina e por aí vai.
Você é de qual turma? Da comum? Do ITA? Da medicina?
Ensinar escola é
também ensinar a indiferença com o mundo, com os colegas, com a família, e digo
mais, é ensinar o egoísmo na medida em que sei que nada ali, naquele período
escolar, é de fato profundo e proveitoso para o que quer que eu queira fazer na
vida. Ensinar escola é ensinar depender emocionalmente e intelectualmente do
professor, essa realidade é vivida principalmente nas universidades, qual o
destino de um aluno universitário que não tem um professor para “puxar o saco”?
Qual o destino de um estudante sem ter um professor para lhe dizer o que
pensar, o que escrever, o que pesquisar? O sistema que advoga liberdade e
pensamento crítico é o mesmo que ensina a depender, é o mesmo que tolhe o
pensamento individual, na verdade, o sistema escolar não sobreviveria se todos
pensassem criticamente.
Ensinar escola é
ensinar autoestima provisória. Você ensina para o exame. Conheço alunos que
estudaram um idioma por cinco anos e não conseguem manter um diálogo básico
apesar de seus boletins serem uma lista de nota dez, ou seja, estudavam para a
prova, não para aprender de fato. E se você me disser que não deveria ter
exame, lhe direi que o exame não é problema quando você internaliza um
conhecimento. O problema é que todo mundo acha que o diploma é o fundamental,
as empresas, as famílias e a sociedade aprovam a posse do diploma, se vive para
a aprovação dos especialistas, estudamos para apresentar o diploma, não para
exercer nossas aprendizagens no cotidiano.
E o final do discurso,
ensinar escola é deixar claro que você não vai se esconder do sistema. Você
está sendo vigiado pelo governo, pelos funcionários, pelo agente de saúde,
pelos vizinhos, pelos professores, e hoje, nós mesmos, nos expomos ao público
ao postar até nossas refeições nas mídias sociais, da escola para a vida no
lar, aprendemos e nos acostumamos com a vigilância intensa. O que fazer?
Deveríamos chutar o sistema compulsório escolar e voltar aos nossos “meio
horários”, deveríamos permitir que nossos jovens aprendessem um oficio no
negócio do vizinho por uns trocados, deveríamos exercer nosso papel de pai e
mãe na educação, permitir que nossos filhos convivessem com seus avós.
No capítulo seguinte,
discurso proferido em outro prêmio, o autor vai falar sobre A escola
psicopata, mas por que psicopata? Tudo começa pela própria
sociedade, criamos um mundo avesso a crianças e idosos, sem passado e sem
futuro, é um constante presente, essa relação é advinda do modo como vivemos e
consumimos, precisamos controlar e ensinar determinados comportamentos que
mantenham o atual sistema como um todo e o sistema escolar é a principal pedra
que sustenta o edifício, depois dele as redes sociais e influencers, as telas.
O autor explica que antigamente tínhamos
interações reais, trabalho na comunidade, caridade na comunidade, brincadeira
em comunidade, aventuras que hoje são impossíveis dentro de nossos apartamentos,
impossível frente a telas de forma ininterrupta e depois de horas sentados em
bancos escolares para aprender a ganhar o diploma. Talvez você pense, “por isso
coloco meu filho em várias atividades extra escolares”, mas não é sobre isso, a
questão é a falta de tempo com adultos e crianças que realmente importam como
pais, irmãos, primos, amigos de infância. Na vida infantil tudo tem uma hora
marcada, há quem ache pouco e para evitar interações profundas com os filhos,
saem da aula de canto para o reforço, depois para a de futebol, depois para a
de idiomas, é creche, tudo para preencher a maior parte do tempo, acreditam que
estão formando um ser desenvolvido e cheio de habilidades, na verdade, segundo
alguns estudos, nossos jovens estão perdendo habilidades básicas como de
comunicação. Algo está errado.
Na página 63, o autor
fala um pouco sobre o que estamos fazendo de errado, não somos mais os
brinquedos de nossos filhos, não somos seu entretenimento, não temos tempo e
cuidamos para que eles também não tenham. Com tudo dado nas telas, as crianças
já não são curiosas. Por não conhecerem e nem conviverem com o passado
familiar, histórias de infância dos pais, com os avós, todos vivemos em um
constante presente. Ensinamos a crueldade, a exclusão, ensinamos a competição e
nossas crianças são assim também. Odiamos a sinceridade e inventamos que tudo é
relativo para esconder que existe certo e errado, bom e ruim, nossas crianças
se sentem ofendidas com a verdade tal qual os adultos. Vivemos o materialismo,
não há espaço para o espiritual, para as virtudes. Vivemos a passividade em que
o Estado dita o que devemos comer, como devemos viver e nos obriga a todo e
qualquer experimento sem que resistamos.
O que fazer? Se impor
como família, como pai e mãe, ser rebelde àquilo que é nocivo para nossa
família, precisamos nos voltar para as comunidades locais novamente, precisamos
estar dispostos a enfrentar o sistema juntos, exemplo disso são as famílias
educadoras atualmente, os pais que se negam a dar a vacina da covid, os pais
que se negam a deixar a criança em tempo integral nas escolas e creches, os
filhos que cuidam de seus pais idosos para não colocá-los em casas de repouso,
cristãos que continuam frequentando suas igrejas locais, vizinhos que se
conhecem e podem bater no portão um do outro para tomar um café. Todas essas
ações são formas de resistência frente ao sistema para retornarmos à
democracia, à individualidade e à família.
No capitulo quatro, o
autor conta como sua trajetória em uma cidade pequena e aprendizado com pessoas
comuns (não especialistas) foram importantes para sua formação humana e para o
tipo de professor que ele se tornou, de como ele pôde fazer a diferença mesmo
estando dentro do sistema.
No capítulo seguinte, Precisamos
de menos escola, não mais, o autor diferencia comunidade de rede
operacional, família de rede operacional. A escola é uma rede operacional de
educação em massa, bem como as telas e seus usos atualmente. A escola não é uma
comunidade, formação escolar não é educação, a polêmica começa nesses termos.
Comunidade é o lugar onde as pessoas lidam umas com as outras ao longo do tempo
e em todas as dimensões da vida humana. Nas comunidades, as pessoas interagem e
recebem recompensa emocional rica e complexa, nas redes operacionais essa
interação é artificial. Você trabalha anos ao lado de um colega, quando sair do
emprego, talvez ele nem lembre de você se o ver na rua, não há tempo nem
interação suficiente para criar laços, porém, como na escola, a maior parte da
sua vida se passa naquele ambiente porque vivemos em, trabalhamos para
redes operacionais, não há incentivo para empresas de famílias ou cooperativas,
as grandes corporações transformaram o mundo numa grande teia globalizada e sem
conexão pessoal.
O Estado se transformou nessa grande mãe que
sustenta e organiza a vida dos cidadãos independente de suas escolhas, ele dita
onde você deve trabalhar, o que deve aprender, o que deve comer e o que deve
tomar, é assim em todos os países democráticos que se renderam as agendas de
interesses corporativos. Na comunidade as pessoas acabam encontrando um sentido
para a vida, no caso das redes operacionais, elas estão para além do indivíduo,
elas agem para se perpetuarem e aumentarem seu poderio sobre a vida de seus
colaboradores. A nova ordem mundial cria relações artificiais trocando a
família pela escola, a iniciativa individual por um emprego em uma corporação,
comida feita em casa pela industrializada, amizades reais por interações
online, relacionamento amoroso por sexo virtual e assim fomos acostumados a
viver e a morrer.
“As crianças aprendem o que elas vivem”
(Gatto, p. 98). Nossas crianças vivem a maior parte de seu tempo na escola,
elas vivem institucionalização, acreditarão que isso é avida como nós fomos
ensinados a acreditar. Se não vivem valores que dão sentido à vida, não podemos
nos admirar com o número crescente de jovens depressivos, violentos e sem
identidade pensando que podem ser o que querem quando na verdade não sabem o
que são, daí as identidades fluidas de hoje em dia. A verdadeira educação, como
diz o autor, é gratuita, não custa um tostão do dinheiro público, mas exige o
tempo todo de um adulto com sua criança. Como resultado dessa vida
institucionalizada, encarcerada, temos “(...) desprezo tanto pela excelência
quanto pela estética, (somos) incapazes de resolver as (...) crises pessoais”
(idem, p.100).
No ultimo capítulo, o
autor fala sobre O princípio congregacional como forma democrática,
libertária e que se autorregula, sem necessidade de intervenção estatal, assim
eram as igrejas, assim eram as famílias e comunidades. Nesse capítulo o autor esclarece
a questão da entrada da mulher no mercado de trabalho, o lado negativo desse
princípio congregacional e a importância de se unir como comunidade local de
forma autônoma. Termino essa resenha com a pergunta do autor que deve ser
respondida individualmente como pessoa e como família: “Para que serve a
educação?” (idem, p.121). Compre o livro, empreste e tente responder para si
mesmo a indagação.
GATTO, John Taylor. Emburrecimento
programado: o currículo oculto da escolarização obrigatória. Tradução
Leonardo Araújo. Campinas, SP: Kírion, 2019.
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