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ORWELL, George. 1984. Tradução: Alexandre Hubner, Heloisa jahn; posfácio Erich Fromm, Ben Pimlott, Thomas Pynchon. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 414p

 

1984: “ livrocrime”

INTRODUÇÃO

A obra 1984, de George Orwell (nome pelo qual ficou famoso na literatura), é um alerta contra regimes totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda, estejam eles governados por capitalistas ou socialistas. E nesse sentido, uso a palavra “alerta” não confundindo literatura com realidade, mas trazendo o conceito de experiência tão bem explicado por Larrosa (2002, p. 21): “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça”. (LARROSA, 2002, p. 21).

  A literatura possui esse poder, nos proporciona experiências que de outro modo jamais tomaríamos sequer conhecimento, isso se deve ao fato de que não há escritor fora de seu tempo e de que a literatura, em determinada medida, expressa as vivências da sociedade e da cultura que ali estão refletidas, basta olharmos as plataformas de streaming atualmente e suas propostas artísticas. 1984 desperta no leitor contemporâneo o medo do totalitarismo, das frases prontas, dos resultados manipulados, de uma sociedade que entrega sua liberdade em troca de “ração, botas e gim Victory”.

WINSTON SMITH, O “HEROI” VENCIDO

Winston Smith (39 anos) vive numa sociedade em que tudo é escasso. Vivem de comer repolho, tomar gim Victory com gosto de peixe; a eletricidade é controlada pelo Estado, a comida é controlada pelo Estado, fabricações de bens são controladas pelo Estado, nenhuma iniciativa privada era possível, inclusive, vida privada era inexistente em Londres na faixa Aérea 1 da Oceânia, porque existia a teletela, aparelho estatal que: “era possível (...) que ela controlasse todo mundo o tempo todo. (...) você era obrigado a viver (...) acreditando que todo som que fizesse seria ouvido (...) todo movimento examinado meticulosamente”. (Orwell, 2009, p. 13).

Em cada quarto, em cada rua, em cada estabelecimento havia teletelas para mandar e controlar as vidas dos civis. O amor era proibido, o orgasmo estava prestes a desaparecer porque o grande irmão, que controlava vidas e destinos, assim decidira, ainda que ninguém tivesse visto ou tivesse certeza da existência ou não do grande irmão. Tudo o que sabemos é contado por um narrador onisciente, segundo Tavares (2013,p. 33): “A narração da obra se dá em terceira pessoa do singular de forma onisciente”. Ao que parece, pelo menos para nós, o narrador odeia o sistema tanto quanto Winston, mas acaba sendo por ele vencido na medida em que o personagem vai sendo engodado na trama da polícia das ideias.

 Segundo o narrador, o maior inimigo do partido, Goldestein era um: “ (...) herege solitário e ridicularizado que aparecia na tela, único guardião da verdade e da saúde mental num mundo de mentiras” (Orwell, 2009, p. 25), assim, vemos que o inimigo era um dos poucos que prezava pelos valores de uma sociedade democrática. O narrador nos apresenta os ministérios de forma abrupta e já deixa claro o que cada um faz. Assim como a vida em público é simplória em um regime totalitário, a fala do narrador do mesmo modo expressa isso, as descrições são feitas de forma crua, com exceção de breves devaneios vividos por Winston ao lembrar da própria mãe. Do modo como o sistema é opressor e não permite clareza sobre verdade e mentira, realidade ou ficção dentro da realidade ficcional, o narrador deixa isso claro quando Winston pensa sobre si mesmo como um louco, só os loucos tinham, talvez, noção do sistema em que viviam. No livro as pessoas, acordam, trabalham, comem, vivem em prol do partido e de sua permanência no poder.

Outra personagem de extrema importância é O’Brien, ele atua como uma espécie de consciência do sistema, ele é lúcido quanto a todas as atrocidades do sistema, porém aceita todas porque a intenção é o poder pelo poder. Não há em toda obra um objetivo que não seja mostrar a incapacidade de resistência do indivíduo frente ao sistema coletivo.

SOCIEDADE

Nessa sociedade, adultos e crianças são treinados a servir ao Estado. Todos os outros laços e instituições desapareceram, a educação fica a cargo do Estado, os casamentos para reprodução ficam a cargo do Estado, mulheres e homens podem ser vítimas de seus próprios filhos ao serem denunciados como traidores. Não se fala das coisas do espírito, a religião é adorar ao partido, as belas artes são criadas e transmitidas com o fim último de servir ao Estado, não se fala sobre o belo, não existe contemplação, o sistema sufoca as criações artísticas humanas quando elas fogem do controle do socing, do sistema com suas implicações, da novafala. Não há discordância, não há passado, não há futuro, todos vivem o mesmo dia até que cometam algum pensamento - crime e sejam evaporados pelo Ministério do amor.

Todos são privados do sono, privados da comida, privados de laços afetivos, com exceção dos proletas que aparecem no livro como uma classe que não oferece nenhum perigo ao sistema, pelo contrário, esses são os mais dominados e afetados a ponto de nem perceberem a miséria ideológica que os condena.

Outra personagem que aparece no livro, contudo não oferece grande profundidade psicológica é Júlia, par quase amoroso de Winston. A moça é um membro fiel do partido aparentemente, na verdade, Júlia é contra o partido, porém guarda toda rebeldia em sigilo, porque sabe do risco que corre se for pega pela polícia das ideias. Julia vai ao comitê, grita nos momentos de ódio, porém secretamente se encontra com Winston para terem um momento de humanidade, para poder se vestir como uma mulher comum, usar vestido e maquiagem, já que era obrigatório o uso de macacões para membros do partido e trabalhadores dos ministérios.


Estamos falando de um mundo em que navalhas para barbear eram escassas, sabonete era algo quase inexistente, itens básicos faltavam devido a guerra permanente, ora com a Lestásia, ora com a Eurásia e da qual Winston duvidava se existia de verdade, chegava a pensar que era uma invenção do partido único para manterem a fabricação de armas e a escassez generalizada de itens básicos, apesar do Ministério da Pujança informar todos os dias que tudo ia bem e que as produções sempre iam além das estimativas. Um fato cômico no livro é o contrabando de manteiga e café, itens que na realidade ficcional só eram permitidos para o alto escalão do partido.

Depois de momentos de prazer no quarto alugado por Winston para se encontrar com Júlia, os dois olham pela janela, para uma mulher proleta que canta lá fora, eles chegam a uma conclusão: estão mortos! Mortos por todos os crimes cometidos contra o Ministério do amor, contra a polícia das ideias, mortos porque Winston escrevia em um caderno que ele pensou ser secreto, mortos porque faziam sexo escondido, mortos porque ele admirava uma peça de cristal antiga, talvez um enfeite, ele não conseguia discernir, mortos porque talvez ele não fosse louco, ou talvez fosse louco e por isso o descontentamento com o partido. Mortos porque gostariam de ter uma família, de poder tomar um café de verdade, de poderem escolher outra vida que aquela que lhes foi imposta.

Nesse momento em que se sentiam mortos, a voz da teletela soa e a patrulha da polícia das ideias invade o quarto e prendem os dois criminosos. Serão levados para o Ministério do amor, precisam ser purificados através das torturas, lá enfrentarão seus piores medos. Depois de purificados serão exterminados, tudo o que precisam é viver para amar o grande irmão ou morrer amando o grande irmão. Ali, Winston vai perder ou recuperar a sanidade, dependendo de que lado você esteja. O’Brien que parecia fazer parte da resistência, se revela como uma espécie de “inquisidor”, ele vai trabalhar a mente e o corpo de Winston até que ele se entregue ao sistema, até que aprenda a amar o partido, mesmo que o grande irmão não exista.

DUPLIPENSAMENTO

O duplipensamento, segundo o texto literário, é:

“(...) a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. O intelectual do partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em consequência, sabe que está manipulando a realidade; mas graças ao exercício do duplipensamento, ele (...) se convence de que a realidade não está sendo violada”. (Orwell, 2009, p. 252).

De forma mais simples, isso significa acreditar em contradições, como o fato de defender a vida e defender o aborto ao mesmo tempo em que se defende os direitos humanos, ou acreditar na igualdade ao mesmo tempo em que se pede mordomias para determinadas classes, ou acreditar nos valores como liberdade e democracia e votar em um político abertamente ditador. O duplipensamento, na obra, instala a oficialização da “verdade/mentira” pelo partido e é algo típico dos intelectuais. O personagem vivia num mundo sem leis que prendia cidadãos por escreverem pensamentos-crime em um caderno.

A citação que segue é suficiente para deixar o leitor meditativo:

“Dizer mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas; esquecer qualquer fato que tiver se tornado inconveniente e depois, quando ele se tornar de novo necessário, retirá-lo do esquecimento somente pelo período exigido pelas circunstâncias; negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo tomar conhecimento da realidade que negamos (...)”. (Orwell, 2009, p. 252). Toda essa estrutura é sustentada pelo Ministério da verdade no qual Winston trabalha, ninguém estava tão apto à loucura, ou sanidade, como o personagem.

NOVAFALA

Novafala é o sistema verbal no qual a sociedade da Oceânia é treinada a falar, toda estrutura depende do uso e aceitação dessa forma verbal, segundo o texto literário, a revolução só será completa quando a linguagem for perfeita, ou seja, quando não for mais possível expressar as antiguidades do passado de forma inteligível. Ultimamente tem se comentado muito sobre essa questão do livro com relação à linguagem neutra que tentam instaurar, sobre isso, que os leitores tirem suas conclusões. A leitura vale muito a pena, sentimos como a bolha social cada dia fica maior e o senso da realidade vai sendo engolido pela oficialização da mentira e de um vocabulário pobre. A novafala completa o duplipensamento porque cada palavra comporta significados contraditórios, falam tudo, mas não dizem nada.

O FIM

Depois de passar pelo “processo”, à moda de Kafka, Winston é curado de sua sanidade ou demência, mais uma vez depende de o leitor entender. No fim, ele aprende ou se entrega ao amor do grande irmão.

OPINIÃO

Um clássico é um clássico não só porque resiste ao tempo, mas porque fala para todas as gerações em todos os tempos e com 1984 não é diferente. Cada página da obra tira o leitor do conforto de um paraíso democrático imaginário, no livro, o sistema digere tudo e todos, a linguagem é tão simples quanto a vida medíocre que está sendo construída a cada palavra. Parafraseando com um trecho do livro, ele não me disse nada que eu já não soubesse, mas eis aí o problema, saber, pensar é crime.

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Referências

LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. 2002.

TAVARES, Débora Reis. A revolta contra o totalitarismo em 1984 de George Orwell, a formação do herói degradado. Dissertação de mestrado – USP. São Paulo, 2013. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-12022014-125702/pt-br.php. Acesso em: 18 de mai. 2022

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