Nasci
na rua como qualquer um poderia nascer, mas não era outro qualquer, era eu. Que importa? Muitos me precederam. Diversas
vezes estávamos em uma esquina, debaixo de um alpendre; esperávamos ninguém. Minha mãe era uma
cadela sozinha no mundo; pai, ser não mencionado. Vivíamos o feijão de todo
dia, assim, ali, do modo como qualquer um da mesma espécie poderia viver.
Que mundo era aquele? Ou melhor, Que jogo será
este? Falar sobre algo é sofrer sua existência, então o melhor é ocupar-se com
coisas, tentar silenciar as perguntas e continuar como um jogador. Mendigo um
prato de comida, quem quer que esteja disposto a dar, não será rejeitado, a
origem da comida não importa, nem o que é colocado no prato ou na sacola, se
puder ser engolido é o suficiente.
Os
parentes sempre foram muitos, porém é como se não existisse ninguém; cada um busca
o que lhe é oferecido, na condição de ser que não somos, nosso valor não é
pensado, não somos aproveitáveis para quase todos. Nunca percorri grandes
distâncias, nunca quis andar em círculos, mas é assim que é, quase todos andam
em círculos nesse jogo, círculo dos pais, dos amigos, da comunidade, tudo gira,
tudo é círculo.
Todos
estão cientes da minha origem, conhecem a minha não privacidade, sabem o que se
passa debaixo do alpendre ou naquela esquina, olham o que eu sofro, mas não
sentem minha desgraça; minha nudez não os ofende, o odor das minhas feridas não
os afeta, os mais sensíveis me expulsam de suas calçadas quando a tarde chega,
outros me ofertam sobras para aliviar a própria consciência, mas para a maioria, a minha presença é invisível. Minha existência é importante para mim mesmo e
isso quase basta.
Sou
resultado das escolhas dos outros, sou resultado das minhas escolhas e sou
resultado da dor que há no mundo, mas que em mim é tão particular como o
arranjo das cores no meu corpo; minha linguagem não é ouvida e por isso dizem
que não falo, não posso mostrar nada além do que já está posto, o que eles
veem? Não importa. Do lugar de onde vim, muitos outros virão, de sorte que como apenas um
cão que passa por você, em uma esquina qualquer, ali estará resumida toda a
minha existência para você, mais um passou.
Qualquer dia desses, você é que passará por
mim e como quem não vê nada me desprezará, mas eu estarei naquela esquina mais
cedo ou mais tarde, caído, inerte, como qualquer outro, acometido pela tragédia
da velocidade do mundo, mais um carro seguiu seu caminho.
Publicado em:http://www.camarabrasileira.com.br/jv18-007.html
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